Lá está ela. Mais uma vez perto da janela, a única por onde ainda
passa alguma luz. Ocupa-se com o mesmo de ontem. Ainda não libertou as linhas e
as agulhas. Com elas repara cada rasgo que ele deixou. Verdade é que ainda não
perdeu a fé no dia que está para chegar, o dia que trará de novo para si o Sr. Amor.
Dona Esperança,
vazia de nada, cheia de tudo, lança, a cada ponto, um olhar distante que
alcança o fim da rua, que fixa um lugar vazio, que se perde nas pedras da
calçada. Começam a faltar-lhe as recordações, ainda assim, a cada instante,
visita a pele morena, o cabelo escuro, cor de corvo, o rosto de feições
harmoniosas pelo qual se perdeu. Sente a segurança dos braços fortes que tantas
vezes lhe guiaram os passos, ouve a voz que outrora lhe sussurrou ao ouvido.
Esperança guarda a firme certeza que, se um dia Deus lhe roubar os olhos, ainda
assim conseguirá desenhar cada traço do corpo, cada linha da alma daquele que já
conheceu como seu. E afoga as lembranças num copo meio cheio pela irmã mais
nova, a menina Saudade.
Bate-lhe à porta
o Dr. Bom Senso. Esperança, nervosa, prefere não a abrir. Sobe as escadas numa
corrida, contendo as lágrimas que teimam em lhe molhar o rosto. Cai nos braços
da sua mãe, a Sra. Paciência.
Recusa a visita da
vizinha Dor, chora no banco do jardim da Dona Verdade.
Passa os dias
assim...
...mas o Amor não voltou, nem mesmo para buscar o livro da filha
Memória, livro com capa de pano que Esperança, com tanto amor, para o Amor
remendou.
Andreia Moreira